Cardeal Branmuller, um dos signatários do Dubia de 2017 que até hoje Francisco não respondeu, fez uma palestra para o Scuola Ecclesia Mater sobre o Vaticano II. Talvez isso tenha sido estimulado pela posição do arcebispo Viganò de que o Vaticano II deve ser abandonado.
Brandmuller procurou ficar no meio termo, não quer negar completamente o Vaticano II, mas ao mesmo tempo acha que alguns documentos do Concílio, como Nostra Aetate e Dignitatis Humanae, estão errados e devem ser abandonados. Na opinião dele também, o concílio falhou ao não condenar o comunismo e que tinha um "otimismo mudano", explícito no documento Gaudum et Spes, que foi prejudicial.
Ele afirma que Vaticano II foi "superlativo" pela enorme quantidade de clérigos e também pela enorme quantidade de documentos. Ele também disse que Vaticano II foi diferente de todos os outros concílios, pois não julgou ninguém, nem fez afirmação dogmática. Foi apenas pastoral, com uso do "remédio da misericórdia" nas palavras de João XXIII. Apesar disso, o cardeal diz que alguns documentos pareceram dogmáticos e foram tratados como tal, gerando confusão. Para finalizar, Brandmuller acha que se deve ter em conta o momento que a Igreja estava vivendo para considerar os documentos. Ele acha que o "horizonte hermenêutico" muda com o tempo.
O que eu achei da análise dele sobre o Vaticano II?
Achei boa em geral, mostrou muito conhecimento dos documentos do concílio. Gosto também da crítica de Nostra Aeatate, coisa que Bento XVI já tinha feito (eu coloquei essa objeção de Bento XVI no
meu livro sobre Guerra Justa). Brandmuller lembra aliás essa crítica de Bento XVI. Gosto também da exaltação que faz do Sílabo dos Erros e da encíclica Mirari Vos.
Mas acho que faltou a análise prática do Vaticano II. Ficou muito acadêmica. Visão acadêmica tem valor muito limitado. Faltou considerar o que fizeram e fazem dos textos do concílio. Faltou analisar o chamado "Espírito do Vaticano II". Em especial, faltou considerar o terrível impacto litúrgico do concílio. Também não gostei de certo relativismo que Brandmuller traz ao reforçar a necessidade de que se considere o período que o Vaticano II foi realizado, para se considerar os documentos pseudo dogmáticos do concílio. Concedo obviamente que deve-se considerar o período histórico de qualquer concílio e que o período em que se vive ressalta um ou outro aspecto da Verdade, mas tenho muito receio dessa ideia de que o "horizonte hermenêutico" muda, pois isso abre brechas enormes para esvaziamento da Tradição, o apego a algumas partes da Verdade, pode ser a senha para as heresias. Afinal, como disse Chesterton, heresias nada mais são doe que uma verdade levada ao extremo, assim como ocorre com o extremismo da misericórdia que vivemos que abandona a tradição..
Faltou também ressaltar que o concílio trouxe muita misericórdia sem tradição. Este tipo de misericórdia anda de mãos dadas com a confusão e a perdição das almas. Hoje em dia só se ouve falar de misericórdia nos púlpitos. Misericórdia vazia. Bobinha. Politicamente correta. Humanista. Temos uma nova religião. Acho que o "otimismo mundano" não é justificável, vivia-se o comunismo em vários países e há muito o processo de secularização estava presente no mundo.
Além disso, ele ressalta que os documentos posteriores ao Vaticano II devem ser levados em consideração, querendo sugerir que os documentos posteriores corrigiram os erros alimentados pelos documentos do concílio. Temo que isso não seja verdade, especialmente, as encíclicas anteriores à queda do muro de Berlim e as encíclicas e documentos de Francisco.
Brandmuller foca muito no que escreveu Bento XVI e abandona os outros papas pós-concílio.Francisco não é mencionado nenhuma vez em seu discurso.
Finalmente, não concordo com Bradmuller de que a usura tornou-se uma questão obsoleta. Na verdade, todos os papas pós-concílio continuam falando dela e o pecado da usura é muito corriqueiro, muito comum no Brasil, por exemplo (descrevo essa questão em detalhes
no meu livro Ética Católica para Economia).
Mas tirem suas próprias conclusões.
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Vaticano II: as dificuldades de interpretação
Ao interpretar documentos conciliares é possível obter opiniões conflitantes, isso certamente não é novidade para a história dos concílios. Formular a verdade da fé significa expressar o mistério indizível da verdade divina na linguagem humana. No entanto, é e continua sendo um empreendimento ousado, que Santo Agostinho já comparou à tentativa de uma criança de esvaziar o mar com um balde.
E nesse empreendimento, mesmo um concílio ecumênico não pode fazer muito mais do que essa criança.
Nada de estranho, portanto, que mesmo as declarações doutrinais infalíveis de um concílio ou de um papa podem realmente definir a verdade revelada - e, portanto, delimitá-la com respeito ao erro -, mas nunca compreendam a plenitude da verdade divina.
Este é o fato essencial de que não devemos perder de vista, as dificuldades de interpretação colocadas pelo Vaticano II. Para ilustrá-las, nos limitaremos aos textos conciliares que são percebidos como particularmente difíceis pelos chamados círculos tradicionalistas.
Antes de tudo, porém, é bom dar uma olhada nas particularidades que distinguem o Vaticano II dos concílios ecumênicos anteriores.
A esse respeito, existe uma premissa: para o historiador do concílio, o Vaticano II aparece, em muitos aspectos, antes de tudo como um concílio de superlativos. Começamos com a observação de que na história da Igreja nenhum outro concílio foi preparado tão intensamente quanto o Vaticano II. Certamente, mesmo o concílio que o precedeu estava muito bem preparado quando começou em 8 de dezembro de 1869.
Provavelmente, a qualidade teológica dos esquemas preparatórios era ainda maior do que a do concílio que o seguia. No entanto, é impossível ignorar que o número de idéias e propostas enviadas de todo o mundo, bem como a maneira como elas foram elaboradas, foram maiores do que todas as que foram vistas até então.
O Vaticano II, concílio de superlativos, surgiu em 11 de outubro de 1962, quando um imenso número de bispos - dois mil quatrocentos e quarenta - entrou na procissão na Basílica de São Pedro. Se o Vaticano I, com seus aproximadamente 642 Padres, havia encontrado um lugar no transepto da Basílica, agora toda a nave central havia sido transformada em um salão sinodal. Nos cem anos entre os dois conselhos, a Igreja tornou-se, como emergiu tão visivelmente tão impressionante, uma Igreja universal, não apenas em nome, mas também de fato, uma realidade que agora se refletia no número dos 2440 Padres e seus países de origem. Acrescente a isso que, pela primeira vez na história, um concílio pôde votar com a ajuda da tecnologia eletrônica e que os problemas acústicos, que ainda incomodavam os participantes do Vaticano I, nem eram mais mencionados.
E como estamos falando da mídia moderna: antes disso, nunca havia acontecido que, como em 1962, cerca de mil jornalistas de todo o mundo tivessem sido credenciados para o concílio. Isso também fez do Vaticano II o concílio mais conhecido de todos os tempos, um evento de primeira classe na mídia.
O conselho de superlativos, no entanto, é particularmente verdadeiro em relação aos seus resultados. Das 1135 páginas que compõem a edição dos decretos de todos os concílios geralmente considerados ecumênicos, vinte, apenas o Vaticano II produziu 315, ou seja, bem mais de um quarto. Portanto, sem dúvida, ocupa um lugar especial na série de todos os conselhos ecumênicos, mesmo que apenas de acordo com critérios externos, materiais.
Além disso, porém, existem outras particularidades que distinguem o Vaticano II dos concílios que o precederam, por exemplo, no que diz respeito às funções do concílio ecumênico. Os concílios são supremos, legisladores supremos, juízes supremos, sob e com o papa, a quem esses papéis pertencem mesmo sem um concílio. Nem todos os conselhos desempenharam essa função.
Se, por exemplo, o primeiro concílio de Lyon, em 1245, com a excomunhão e deposição do imperador Frederico II agiu como tribunal e, além disso, aprovou leis, o Vaticano I não realizou julgamentos ou aprovou leis, mas decidiu exclusivamente questões doutrinárias.
O Concilio de Vienne de 1311/12, no entanto, julgou e aprovou leis, e também decidiu sobre assuntos doutrinários.
O mesmo se aplica aos concilios de Constança de 1414/18 e de Basiléia-Ferrara-Florença de 1431/39.
O Vaticano II, por outro lado, não pronunciou julgamentos, não decretou leis e nem sequer tomou decisões definitivas sobre questões de fé.
Na verdade, deu forma a um novo tipo de concilio, ou seja, um concílio pastoral, portanto, de cuidar de almas, com o objetivo de tornar conhecidas ao mundo o ensino e as instruções do Evangelho de uma maneira mais atraente e orientadora.
Em particular, ele não expressou condenação doutrinária. João XXIII, em seu discurso para a solene abertura do conselho, falou explicitamente sobre isso: "Não há tempo em que a Igreja não se oponha a esses erros; ela freqüentemente os condenou, e às vezes com a maior severidade. Quanto aos dias atuais, [...] ela prefere usar o remédio da misericórdia [...]; ele acha que as necessidades de hoje devem ser atendidas, expondo o valor de seu ensino mais claramente do que condenando ".
Bem como sabemos cinquenta anos após sua conclusão, o concílio teria escrito uma página gloriosa se, nos passos de Pio XII, ele tivesse encontrado a coragem de uma condenação repetida e expressa ao comunismo.
O medo de pronunciar condenações doutrinárias e definições dogmáticas, no entanto, levou à conclusão de que, no final do concílio , havia declarações conciliares com um grau de autenticidade e, portanto, também com um caráter vinculativo completamente diferente.
Assim, por exemplo, as Constituições Lumen gentium sobre a Igreja e Dei Verbum sobre revelação divina certamente têm a natureza e o caráter vinculante dos ensinamentos doutrinários autênticos - embora aqui também nada tenha sido definido estritamente no sentido estrito - enquanto, por exemplo, a Declaração sobre a liberdade de religião Dignitatis Humanae, de acordo com Klaus Mörsdorf, "toma posição sobre questões da época sem um conteúdo normativo claro".
De fato, isso se aplica a documentos disciplinares, que regulam a prática pastoral. A natureza vinculativa dos textos conciliares é, portanto, de um grau diferente.
Dando um próximo passo, a pergunta deve ser feita sobre a relação entre o Vaticano II e toda a Tradição da Igreja. Encontramos uma resposta analisando quanto os textos conciliares se baseavam na Tradição. Basta examinar, nesse sentido, a título de exemplo, a constituição Lumen gentium. Basta dar uma olhada nas notas do texto. Assim, pode-se ver que os dez concilios anteriores são mencionados no documento. Entre eles, o Vaticano I é tomado como referência 12 vezes, o Tridentino até 16.
Ainda mais próxima é a relação com a Tradição, se pensarmos que, entre os papas, Pio XII é mencionado 55 vezes, Leão XIII em 17 ocasiões e Pio XI em 12 passagens. Temos também menções a São Bento XIV, Bento XV, Pio IX, Pio X, Inocêncio I e Gelasius.
Contudo, o aspecto mais impressionante é a presença dos Padres nos textos de Lumen gentium. Os pais a cujos ensinamentos o concílio se refere são até 44. Entre eles destacam-se Agostinho, Inácio de Antioquia, Cipriano, João Crisóstomo e Irineu.
Os grandes teólogos, ou os doutores da Igreja, também são mencionados: Tomás de Aquino em 12 vezes, juntamente com outros sete nomes de peso.
Essa lista é suficiente para ilustrar até que ponto os pais do Vaticano II se entenderam na corrente da tradição, integrada ao processo de recebimento e transmissão, que é a razão de ser da Igreja: "De fato, recebi do Senhor, o que te passei ", diz o apóstolo. É evidente que também nesse aspecto não se pode falar de um novo começo da Igreja, portanto de um novo Pentecostes.
Isso leva a importantes consequências para a interpretação do concílio e mais precisamente não do "evento do concilio", mas de seus textos.
Uma preocupação central e tangível em muitas das declarações de Bento XVI tem sido destacar a estreita conexão orgânica do Vaticano II com o restante da tradição da Igreja, destacando assim que esteja errada uma hermenêutica que acredita que o Vaticano II rompeu com a tradição.
Essa "hermenêutica da ruptura" é feita tanto por aqueles que no Vaticano II vêem um afastamento da fé autêntica da fé, portanto um erro ou até uma heresia, como por aqueles que, com essa ruptura com o passado, queriam ousar uma partida corajosa para novas margens.
No entanto: a presunção de uma interrupção no ensino doutrinário e na ação sacramental da Igreja é impossível, mesmo por razões teológicas.
Pois se cremos na promessa de Jesus Cristo de permanecer com sua Igreja até o fim dos tempos, de enviar o Espírito Santo que nos apresentará a riqueza da verdade, é até absurdo pensar que o ensino da Igreja, transmitido autenticamente, em um tempo pode estar errado em algum ponto ou que um erro que sempre foi rejeitado pode ser revelado em algum momento como verdade.
Qualquer um que considere possível seria vítima desse relativismo, para o qual a verdade está essencialmente sujeita à mutabilidade, ou seja, ela realmente não existe.
Cada concílio dá sua contribuição específica a essa tradição. Certamente, também pode não consistir em adicionar novo conteúdo ao depósito da fé da Igreja. E menos ainda na eliminação dos ensinamentos da fé proferidos até agora. Em vez disso, o que é realizado aqui é um processo de desenvolvimento, esclarecimento, discernimento, e isso com a ajuda do Espírito Santo, um processo que leva a fazer com que cada concílio, com suas declarações doutrinárias definitivas, entre como parte integrante do Tradição geral da Igreja.
Deste ponto de vista, os concílios estão sempre abertos, para um anúncio doutrinário mais completo, claro e atual, nunca para trás. Um concilio nunca pode contradizer aqueles que o precederam, mas pode integrar, especificar e continuar.
No entanto, as coisas são diferentes para o concílio como um corpo legislativo. Este último pode - e certamente deve - abordar, mas sempre dentro dos limites indicados pela fé, as necessidades concretas de uma situação histórica específica e, desse ponto de vista, está em princípio sujeito a alterações.
A partir dessas observações, uma coisa deveria ter emergido claramente: tudo o que foi dito também se aplica ao Vaticano II. Também não é nada mais - mas também nada menos - que um concílio ao lado e depois dos outros. Não está acima nem mesmo fora, mas faz parte da série de concílios ecumênicos da Igreja.
Que isso é verdade não é menos evidente pelo entendimento de quase todos os concílios.
Apenas lembre-se de suas respectivas declarações, bem como as dos primeiros Padres, sobre o assunto. Eles reconhecem na tradição a própria natureza dos concílios.
Vincenzo di Lerino († antes de 450) já reflete expressamente sobre isso em seu Commonitorium: “O que a Igreja aspira através de seus decretos do Concílio, senão para garantir que o que antes o Concílio era simplesmente acreditado, fosse acreditado com maior diligência; que o que foi anunciado anteriormente sem força fosse posteriormente anunciado com maior intensidade; que o que foi celebrado pela primeira vez com absoluta certeza, fosse posteriormente adorado com maior zelo? Creio que isso, e nada mais, a Igreja, abalada pelas inovações dos hereges, sempre obteve através de seus decretos conciliares: o que anteriormente havia recebido dos 'antepassados' apenas por tradição, agora a depositou por escrito também para os 'posteridade'. Ele fez isso resumindo muito em poucas palavras e, freqüentemente, com o objetivo de um entendimento mais claro, expressando o conteúdo inalterado da fé com novas definições "(Commonitorium, cap. 36).
Essa convicção autenticamente católica encontra expressão na definição do segundo concílio de Nicéia em 787, que afirma: "Desse modo, prosseguir na rota real, seguindo em todos os aspectos o ensino inspirado de nossos santos pais e a tradição da Igreja Católica. reconhecemos, de fato, que o Espírito Santo vive nele, definimos ... "; siga os princípios centrais do decreto conciliar.
O último dos quatro anátemas também é particularmente importante: "Se alguém rejeita qualquer tradição eclesiástica, seja escrita ou não, seja anátema".
Ao realizar um conselho, a Igreja realiza sua natureza mais profunda. A Igreja - e, portanto, o conselho - transmite vivendo e vive transmitindo. A tradição é a verdadeira realização de sua essência.
O elemento decisivo do horizonte interpretativo é a transmissão autêntica, não o espírito da época. Isso absolutamente não pode significar rigidez e imobilidade. O olhar de hoje não deve falhar. As perguntas atuais são as que requerem resposta. Mas os elementos que compõem a resposta só podem vir da Revelação divina, oferecida uma vez e para sempre, que a Igreja nos transmite autenticamente ao longo dos séculos. Essa transmissão, portanto, também constitui o critério ao qual cada nova resposta deve se referir para que seja verdadeira e válida.
Essas considerações fundamentais também devem ser levadas em conta na interpretação dos textos do Conselho mais debatidos.
Estas são principalmente as Declarações Nostra Aetate e Dignitatis humanae, que levantaram objeções da Fraternidade de São Pio X. Esta última acusa o conselho de ter cometido um erro na fé. Para isso, no entanto, devemos responder com decisão.
É bastante claro que um texto conciliar formulado em 1965, que na época se destinava a partir da situação em que nasceu e com base na intenção de suas afirmações, quando proclamado no mundo de hoje, deve necessariamente ser contemplado no horizonte interpretativo atual.
Tomemos, por exemplo, Nostra aetate. Aqueles que acusam este texto de indiferentismo religioso hoje devem lê-lo à luz de Dominus Jesus, que excluiria categoricamente qualquer mal-entendido no sentido de indiferentismo ou sincretismo. Com impulsos sempre novos, o magistério pós-conciliar, através de seus esclarecimentos, removeu a base para qualquer interpretação errônea dos textos conciliares, tanto no sentido tradicional quanto no progressista.
Após essas observações fundamentais, gostaria agora de explicar outro princípio interpretativo que resulta da historicidade de cada texto. Assim como todos os textos - e, portanto, também todos os textos magisteriais - surgem de uma situação histórica específica e também são determinados pela situação concreta de sua concepção, eles também são proclamados com uma intenção específica em um momento histórico específico.
Não devemos perder de vista esse princípio quando hoje vamos interpretar um desses textos.
Também devemos levar em conta o fato de que o horizonte hermenêutico assim determinado muda, é modificado, na mesma medida em que o intérprete atual está distante do momento em que o texto nasceu. Isso significa que interpretações passadas, dependendo de quanto tempo estão ao longo do tempo, podem fazer mais ou menos apenas reivindicações de interesse histórico. Essa conscientização é particularmente importante quando se trata dos textos do ministério magisterial e pastoral da Igreja.
Alguém poderia objetar imediatamente que a verdade, especialmente a da revelação divina, é uma verdade eterna e imutável, que não pode ser alterada. Certamente isso não pode ser questionado. "O céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão", diz o Senhor.
No entanto, é igualmente verdade que o reconhecimento dessa verdade eterna pelo homem sujeito a mudanças históricas está sujeito a mudanças, assim como o homem que reconhece. Ou seja, dependendo do momento histórico, um ou outro aspecto da verdade eterna é apreendido, reconhecido e compreendido de uma maneira nova e mais profunda.
Precisamente por esse motivo, mesmo um texto conciliar, se contemplado no contexto espiritual, cultural etc. e à luz do nosso tempo, isso pode ser entendido de uma maneira nova, mais profunda e clara.
Na medida em que levarmos esse conceito em consideração em nossos esforços para entender os ensinamentos do Vaticano II hoje, seremos capazes de superar vários conflitos que surgirem.
Obviamente, a interpretação do conselho é a tarefa do debate teológico, que sempre lidou com ele. De fato, os resultados desse debate finalmente encontraram espaço nos documentos do magistério pós-conciliar.
À luz do que foi dito, seria um erro grave não levar isso em consideração na interpretação do concílio para o tempo presente e agir como se o tempo tivesse parado em 1965.
Gostaria de ilustrar o que foi dito com três exemplos que me parecem particularmente característicos.
Nesse sentido, destacam-se imediatamente a Declaração Nostra Aetate sobre a relação entre a Igreja e as religiões não-cristãs e o Decreto Unitatis sobre ecumenismo. Durante muito tempo, os dois documentos foram objeto de críticas dos chamados círculos tradicionalistas. Ambos são acusados de falta de clareza e de não tomar decisão na defesa da verdade, isto é, trouxe sincretismo, relativismo e indiferença. No momento da aprovação dos textos, era difícil prever que eles pudessem ter essas críticas.
Foi a experiência do totalitarismo na primeira metade do século XX e das perseguições vividas em conjunto por judeus e cristãos - católicos, protestantes e ortodoxos - das coisas fundamentais que eles tinham em comum. O compromisso de superar as hostilidades antigas e de uma nova convivência era geralmente percebido como um dever imposto pelo Senhor. Leia com esse espírito e contra esse pano de fundo, para isso os dois documentos deram impulsos muito fortes.
Mas então passou-se o tempo. Apenas algumas décadas após a conclusão do concílio, uma visão teológica das religiões não-cristãs foi desenvolvida, sobretudo na região anglo-saxônica, que falava de diferentes formas de salvação para o homem, mais ou menos equivalentes, e que, portanto, questionavam a missão cristã. Acreditava-se que o anúncio da Igreja visava fazer um muçulmano se tornar um muçulmano melhor, e assim por diante.
Foi o britânico John Hick que espalhou esse tipo de idéia mais ou menos desde 1980. De fato, nesse novo cenário, uma ou outra formulação do Nostra aetate poderia ser mal compreendida.
Além disso, a Nostra Aetate "fala da religião apenas de maneira positiva e ignora as formas doentes e perturbadas da religião, que, de um ponto de vista histórico e teológico, têm um amplo escopo" (Bento XVI, vol. VII / 1, prefácio).
Neste ponto, é necessário lembrar em particular a passagem do Nostra aetate que se refere ao Islã. O texto não é apenas acusado de indiferença. Deve-se notar, no entanto, que o decreto diz que deve-se respeitar também os muçulmanos ("cum aestimatione quoque muslimos respicit"), não o islamismo. Seu ensino não é entendido. O fato de que nas formulações subsequentes por trás de palavras idênticas ou semelhantes oculta um entendimento muito diferente é evidente para o estudioso do Islã hoje. Neste ponto do documento, que pretende preparar o caminho para um diálogo pacífico, o padrão rígido da terminologia dogmática não deve ser aplicado, embora um compromisso nesse sentido seria desejável. De fato, o texto foi publicado em 1965.
Para nosso entendimento atual, o problema assume um aspecto completamente diferente: é o Islã que mudou profundamente no último meio século, como evidenciado pelo grau de agressão e hostilidade islâmica em relação ao Ocidente "cristão". No contexto da experiência das décadas, um decreto desse tipo deveria dizer outra coisa.
Para os propósitos de uma hermenêutica conciliar séria, portanto, não há sentido em se enfurecer e argumentar contra o texto de 1965: o decreto agora tem apenas um interesse histórico.
Foi então o magistério, com a Declaração Dominus Jesus, que removeu as bases de todo indiferentismo e indicou inequivocamente Jesus Cristo como o único caminho para a salvação eterna e a única, santa, católica e apostólica Igreja de Jesus Cristo como a única comunidade de salvação para todo homem.
Algo semelhante aconteceu com os vários esclarecimentos sobre o significado da famosa "subsistência". Se no discurso ecumênico houve declarações que pudessem despertar a impressão de que a Igreja Católica era apenas um dos muitos aspectos da Igreja de Jesus Cristo, a interpretação de "subsistência", também confirmada por Dominus Jesus, eliminou qualquer mal-entendido. Outro escândalo é representado para muitos pela Declaração Dignitatis humanae sobre liberdade de religião. Ela também é acusada de indiferença, traição da verdade da fé e contradição ao Syllabus Errorum do Beato Pio IX.
O fato de não ser esse o caso é evidente se os princípios interpretativos formulados acima forem aplicados: os dois documentos nasceram em um contexto histórico diferente e devem responder a diferentes situações.
O Syllabus errorum - como a Encíclica Mirari Vos de Gregório XVI anteriormente - visavam a refutação filosófica da reivindicação de absoluto da verdade, especialmente da verdade revelada pelo indiferentismo e pelo relativismo. Pio IX havia enfatizado que o erro não tem razão em relação à verdade.
Dignitatis humanae, por outro lado, parte de uma situação completamente diferente, criada pelos totalitarismos do século XX que, por constrangimento ideológico, denegriram a liberdade do indivíduo, da pessoa. Além disso, os pais do Vaticano II tinham diante deles a realidade política de seu tempo, que sob diferentes condições, mas não em menor grau, ameaçava a liberdade da pessoa. Por essa razão, no centro de Dignitatis humanae não havia a incontestável intocabilidade da verdade, mas a liberdade da pessoa de qualquer restrição externa à convicção religiosa.
Nesse sentido, é bom garantir aos defensores da "a-historicidade absoluta da verdade" que nenhum teólogo ou filósofo com bom senso falaria em mutabilidade, na inconstância da verdade. Em vez disso, o que muda, que está sujeito a mudanças, é o reconhecimento, a consciência da verdade pelo homem, que muda totalmente. Aqui ocupa um lugar de excelência a profissão de fé do Povo de Deus, que Paulo VI proclamou no clímax da crise pós-conciliar.
Em resumo: Os conteúdos programáticos defendiam a verdade, o Vaticano II, a liberdade da pessoa.
É difícil discernir uma contradição entre os dois documentos se eles são contemplados em seu contexto histórico e compreendidos de acordo com quais eram as intenções de suas declarações.
Além disso, para fins de uma interpretação correta, hoje todo o magistério pós-conciliar deve ser levado em consideração.
Por fim, deve-se mencionar também o otimismo mundano, evidentemente um pouco ingênuo, que animara os pais do Conselho durante a redação de Gaudium et spes.
Assim que o conselho terminou, tornou-se evidente que esse "mundo" estava passando por um processo cada vez mais rápido de secularização, que levou a fé cristã e a religião em geral às margens da sociedade.
Era, portanto, necessário redefinir a relação entre a Igreja e "este mundo" - como João o chama - e completar, interpretar, o texto conciliar, por exemplo, no sentido dos discursos de Bento XVI durante sua visita à Alemanha.
Isso significa, no entanto, que uma interpretação atual do Concílio, que traz à tona a essência do ensino conciliar, tornando-o frutífero para a fé e o ensino da Igreja do presente, deve-se ler seus textos à luz de todo o magistério pós-conciliar e entender sua documentos como atualização do conselho.
Como destacado no início: o Vaticano II não é o primeiro nem será o último concílio. Isso significa que suas declarações magisteriais devem ser examinadas à luz da tradição, ou seja, interpretadas de maneira a serem capazes de identificar, com relação a ela, uma extensão, um aprofundamento ou mesmo um esclarecimento, mas não uma contradição.
A transmissão, tradição, não implica a entrega simples de uma embalagem bem selada, mas um processo orgânico e vital, que Vincenzo di Lerins compara à transformação progressiva da pessoa de criança para homem: é sempre a mesma pessoa que passa pelos estágios de desenvolvimento.
Isso se aplica às áreas da doutrina e à estrutura hierárquica-sacramental da Igreja, mas não à sua ação pastoral, cuja eficácia continua sendo determinada pelas necessidades das situações contingentes do mundo ao seu redor. Certamente, aqui também, qualquer contradição entre prática e dogma deve ser excluída.
É um "processo ativo de recepção", que também deve ser realizado em razão da unidade dentro da Igreja. De fato, também existem casos - não no contexto das verdades da fé, mas no da moral - em que hoje o que foi proibido ontem pode ser apropriado.
Se, por exemplo, antes do Vaticano II, a proibição absoluta de cremar os mortos resultasse na excomunhão dos católicos que haviam escolhido a cremação, numa época em que a cremação perde sua aparência de protesto contra a fé na ressurreição dos mortos, era possível levantar esta proibição.
Isso se aplica de maneira semelhante no caso da proibição das taxas de juros no século XV-XVI, quando os franciscanos e dominicanos - e mais precisamente em Florença - se desafiaram em duelos amargos nos púlpitos, onde os competidores se acusavam de heresia por causa da adoção da taxa de juros e se ameaçava o oponente queimar nas chamas do inferno. Era um problema moral, nascido com as mudanças das reformas econômicas e depois tornou-se obsoleto.
Devemos ir devagar, portanto, também no debate sobre o Vaticano II e sua interpretação, que por sua vez deve ocorrer no contexto da situação que mudou com o tempo. Nesse sentido, o magistério dos papas pós-conciliares fez importantes contribuições, que, no entanto, não foram suficientemente levadas em consideração, embora devam ser notadas precisamente no atual debate.
Então, nesta discussão, é bom lembrar o aviso à paciência e modéstia de São Paulo em Timóteo (2 Tim 4, 1 s.).
Infelizmente, essas comparações continuam tendo formas que não concordam bem com o amor fraterno. Deveria ser possível conciliar zelo pela verdade com justiça e amor ao próximo. Em particular, seria apropriado evitar a "hermenêutica do suspeito" que acusa o interlocutor na partida de concepções heréticas.
Em resumo: As dificuldades na interpretação dos textos conciliares não derivam apenas do seu conteúdo. A maneira pela qual nossas discussões são conduzidas deve ser cada vez mais levada em consideração.
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Rezemos para que todos entendam que pelo menos alguns documentos do Vaticano II foram muito prejudiciais à Igreja e que o tal "espírito do Vaticano II" não nos serve.