quinta-feira, 10 de março de 2022

Teoria da Guerra Justa e a Guerra da Ucrânia


Eu não estava com muito estímulo para discutir como a Guerra da Ucrânia se encaixa na teoria da guerra justa, assunto que tratei no meu livro mais conhecido, Teoria e Tradição da Guerra Justa (editora Vide Editorial) dado a estupidez generalizada que envolve o conflto. Mas hoje eu vi que o grande filósofo católico Edward Feser resolveu escrever justamente sobre a teoria diante da Guerra da Ucrânia no seu blog.

Fiquei estimulado porque infelizmente discordei muito dos argumentos de Feser.

Discordei de quase todos os argumentos, mas concordei com a conclusão, mesmo porque a conclusão não é assim tão difícil diante dos envolvidos no conflito.

O erro central de Feser foi usar as condições da Teoria da Guerra Justa usada pelo Catecismo da Igreja Católica.

Todos os católicos deveriam saber que o Catecismo deve ser lido e conhecido pelos católicos, mas o catecismo não traz nenhuma doutrina nova, nem eleva a dogma aquilo que não é dogma.  A Teoria da Guerra Justa não é dogma. As coisas que o Catecismo traz pode sim conter erros em relação ao magistério tradicional na Igreja e em relação aos maiores doutores da Igreja.

Esse último caso é o caso da Teoria da Guerra Justa no Catecismo: as condições para a guerra justa que traz o Catecismo não seriam aceitas na sua totalidade nem por Santo Agostinho, pai da teoria, nem por São Tomás de Aquino, especial a condição "elevada chance de sucesso na guerra".

Como Feser usa o Catecismo e aceita que a perspectiva de "elevada chance de sucesso na guerra" é uma condição para a teoria, ele comete erros e deixar de debater assuntos importantes.

Veja se os Cruzados levassem em conta "sérias chance de sucesso", nós não estaríamos, por exemplo, no Brasil, nem a Alemanha seria a Alemanha como ela é conhecida hoje (Portugal deve sua existência aos Cruzados e a Alemanha deve seu território aos Cruzados). Se os franceses e ingleses tivessem levado em consideração a chance de sucesso, a Alemanha teria vencido a Primeira Guerra. Se Cervantes tivesse levado a sério a chance de sucesso não teria ido participar da Batalha de Lepanto, guerra que os cristãos afastaram os muçulmanos mas que tinha muita pouca chance de sucesso.

Se vocês quiserem ler os argumentos de Feser, cliquem aqui. Agora, vou fazer a minha análise.

As condições para se realizar uma guerra, segundo a Teoria da Guerra Justa, aceitas por séculos e séculos e adotadas deste Santo Agostinho são:

1. Deve haver autoridade legítima para declarar guerra;

2. Deve haver uma justa causa;

3. Deve haver justa intenção na guerra;

4. Proporcionalidade, as autoridades deve equilibrar a justiça que pretendem realizar com a guerra com os prejuízos em vida e materiais que a guerra sempre traz.

Diante dessas 4 condições, como se pode analisar a Guerra da Ucrânia?

Primeiro, do lado da Rússia. Claramente a Rússia não faz guerra justa, cumpriu a primeira condição mesmo sendo Putin um ditador, mas não tem nenhuma das outras três condições. Rússia não está do lado ético do conflito.

Do lado da Ucrânia, se fossemos usar a condição de "chance de sucesso" do Catecismo a guerra já tinha acabado, pois em termos estritamente militares, a Ucrânia não tem a menor chance de vitória.. A Ucrânia está do lado ético, tem autoridade legítima, tem causa justa, tem intenção justa e a quarta condição é sofrível para a Ucrânia pela fraqueza militar do país. Onde está o erro da Ucrânia? O presidente da Ucrânia errou muito antes do início do conflito, brincou com a situação e desprezou os alertas. Agora o mundo aplaude o presidente da Ucrânia, que tenta surfar na onda, pois Putin perdeu totalmente a guerra da propaganda.

Do lado da Otan, deve a Otan se meter no conflito?  Essa é a questão mais difícil. Bom, a Rússia é um país com armas nucleares. Para se enfrentar um país assim deve-se ter muito cuidado, pois todo o planeta está em risco. Feser se pergunta: e se a Rússia usar armas nucleares contra a Ucrânia? Seria um crime hediondo, mas a Otan teria que revidar? 

A resposta de Feser é dizer que se a Rússia usar armas nucleares sozinha ela certamente vai sair vitoriosa. Mas que se o Ocidente revidar, a guerra pode ser total no mundo e podemos ter uma situação que ninguém sai vitorioso.

Depois disso, Feser não soube mais o que dizer. E ficou tratando do aspecto político interno dentro dos EUA.

Eu continuo o debate.

Pois é, a posse de armas de nucleares é central para se analisar a Rússia e a reação contra este país. Quem tem armas nucleares sabe disso e não vai abandonar essas armas. O que fazer? Devemos deixar a Rússia sair vitoriosa em nome da sobrevivência do mundo e uma "paz injusta"? A resposta é não para Santo Agostinho. 

Claro, ele não conheceu as armas nucleares. Mas se você tentar reajustar a teoria da guerra justa para que ela dependa do tipo de arma, iremos abandonar o sustentáculo da teoria da guerra justa, qual seja, a justiça.

A Otan deve estabelecer uma zona "no fly" contra a Rússia? Não, um conflito restrito a Ucrânia não é razão suficiente para promover uma guerra nuclear.

O que o Ocidente pode fazer para a Ucrânia? Nós estamos nessa situação por causa de inúmeros erros da Ocidente na relação com a Rússia desde há muito tempo. E também erros da Rússia e da Ucrânia.

O que o Ocidente deve fazer agora? Sanções econômicas têm pouco efeito, não possuem aceitação de países importantes como a China e há maneiras de se escapar. Guerra de propaganda ajuda a guerra contra a Rússia, mas muitas vezes é fundamentada em mentiras. Fornecer armas para a Ucrânia? Isso é meio estupidez, pois além de incitar a guerra nuclear, deve encontrar uma situação desesperadora no exército ucraniano e terá pouco impacto.

Um coisa certamente o Ocidente deve aprender com a guerra. Deve se afastar e mesmo tentar eliminar os laços econômicos com todos os países antiocidentais, como a Rússia, a China e os países islâmicos. Esses laços econômicos podem derrotar o Ocidente antes da guerra. O fim desses laços terá consequências no bem-estar do Ocidente certamente, afinal vivemos cercados de produtos chineses.

Outra coisa, o Ocidente deve se preparar para qualquer guerra, mesmo nuclear e mostrar isso claramente a Rússia. 

Além disso é basicamente rezar para que o conflito logo se resolva, e que a Rússia não obrigue o Ocidente a usar armas nucleares em nome da justiça.

 

4 comentários:

Anônimo disse...

Olá amigo!
Estava ansioso por sua análise sobre esse assunto. Obrigado!
Tenho uma pergunta ridícula: dado a impossibilidade de vitória militar da Ucrânia, e se eles houvessem adotado a desobediência civil? O que o sr. acha da teoria?
Obrigado!
Gustavo.

Pedro Erik Carneiro disse...

Caro Gustavo,

Para responder sua pergunta, primeiro teríamos que supor que o objetivo de Putin é dominar a Ucrânia territorialmente e politicamente. Mas ele nunca disse isso, o que ele disse é que deseja um compromisso internacional da Ucrânia. A mídia anda cometendo esse erro factual.

Outra coisa, desobediência civil não costuma funcionar, em geral é eficiente apenas para pequenos grupos e por pouco tempo. Muita gente vai desobedecer, outros vão ganhar dinheiro com o domínio russo, etc.

Abraço,
Pedro Erik

Anônimo disse...

Caro Pedro,
Não foi essa a estratégia da Índia para independência dos ingleses?
Outra coisa: acho que é isso mesmo o que quer Putin, que no final significa desejar uma Ucrânia obediente à Rússia, igual Belarus. Mas não sei como ele vai sair dessa, pois o estrago na reputação do país e os prejuízos econômicos são significativos.
Abraço,
Gustavo.

Pedro Erik Carneiro disse...

Gustavo,

Ha muitas diferenças em relação a Índia.
O caso da Índia não foi uma invasão de guerra. O Reino Unido financiou e manteve a Índia muitos anos. E muitos indianos lutaram do lado dos ingleses nas duas grandes guerras, com apoio de Gandhi.

Além disso a desobediência civil foi seguida por poucos na Índia. Nem poderia ser diferente. A Índia tem muitas divisões internas.

Deixar a Ucrânia obediente não é a mesma coisa que dominar militarmente.

Quanto a reputação, lembre que somos temos acesso ao que o Ocidente diz.

Abraço